Quase todos os anos acompanho a caminhada em procissão de São Sebastião, que sai do Mucuripe e vai até a igreja do Dendê. Essa procissão é centenária, minha finada sogra dizia que, quando criança, era das festas mais animadas da cidade.
No cortejo vão pessoas pagando promessas, descalças, vestidas de São Francisco com aquelas roupas marrons, outras ajudam a levar o andor do santo. Os fogos vão estourando do começo ao fim da festa, é uma animação só.
Numa dessas caminhadas que fui, convidei o Nego da Iria para ir comigo. Ele já estava meia-praia, é desses sujeitos que adora tomar um gorozinho. Como em todas as manifestações religiosas populares as pessoas costumam dar vivas aos santos e, na oportunidade, gritavam "Viva Nossa Senhora" e o povo "Viva", "Viva Mártir São Sebastião" e a louvação era a mesma para todos os santos.
A convite do padre, nós — eu e Nego — estávamos ajudando a levar uma pequena radiadora sustentada num pau pesado e enorme, que era o som que puxava os benditos e as orações.
Em meio aos gritos de louvação aos santos, o Nego da Iria algumas vezes gritava “ Viva o Nego da Iria” e o povo respondia com a mesma animação em viva. Foi uma tamanha falta de respeito e canalhice com os santos; não do povo — que na verdade não sabia distinguir o nome de quem estava sendo chamado por causa da concentração nas orações —, mas do meu companheiro que estava quase bêbado.
Quando se encerra a procissão, acontece o outro momento da festa que é a celebração da missa, e nessa hora nós ficamos sentados na mesa das barracas do lado de fora para tomarmos uma cerveja.
O padre começou a falar das pessoas que vão para as novenas só para participar da festa e não participam da missa. O nego ficou danado, disse um tremendo palavrão com o padre, depois falou "É isso aí. A gente ajuda o cara a carregar o som e o pagamento que ele nos dá é falar da gente. Isso tá errado, meu irmão."
Entendimentos diferenciados numa mesma história. Primeiro o Nego foi exaltado como santo, devido a sua traquinagem, depois ele se sentiu ofendido com uma mensagem que não estava sendo dada diretamente para ele.
O importante é perceber que às vezes uma entonação diferente pode tornar uma palavra mais pesada do que ela realmente é, e às vezes uma brincadeira pode ser uma coisa hilariante ou mesmo se tornar uma caso de intriga.
Manu Kelé
Manu Kelé: Sou Poeta, Músico, Compositor e Professor, comecei a brincar com as palavras nos intervalos do curso de História, que era festejado no Pátio Interno da UFC, com os meus amigos Eduardo Loureiro, Fabiano Piúba e a amiga Luíza de Theodoro. Formamos o grupo "Os Internos do Pátio" que se reune até hoje para encantar nossos sons poéticos.
Baião de dois
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